sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Augusto Bracet e a Arte Maior

Prof. Augusto Bracet

As mãos ligeiras cerravam a madeira, passavam o formão, acariciavam-na
buscando irregularidades e, logo a seguir, cortavam a tela, martelavam fixando
-a ao bas-
tidor.
Tudo isso feito com gestos rápidos, medidos, precisos ou com a lentidão delicada
do movimento quando necessário. As mãos, os olhos, os trejeitos do corpo, um sorriso
quase sempre presente, a maneira de olhar
, as pequenas nuances dos sentidos de um
artista completo caracterizavam o P
rofessor Augusto Bracet que conheci no Rio de
Janeiro no início dos idos anos 50. Era um homem no qual o tempo parou. Tinha
conseguido aquele mágico congelamento que se nota nos consumados mestres de
p
intura ou nos autênticos homens profundamente religiosos. A religiosidade em Bracet
se expressava na sua maneira de ser. De sentir e de transmit
ir aos seus alunos e amigos,
a sua
vivência. Era um homem profundamente moderno apesar de ser considerado
pelos cr
íticos como um artista clássico arredio aos chamados modernismos. Tivemos
belas conversas sobre esse tema. E para p
rovar o que era para ele a pintura prontifi-
cou-se a me ensinar a pintar. E um belo dia lá estava eu de cavalete, tela virgem, caixa
de ti
ntas e todo o instrumental de pintura numa paisagem bucólica de inverno em
Friburgo. Diante de nós uma pobre cabana junto a algumas árvores tendo ao fundo um
pequeno morro. No pátio algumas roupas estavam a seca
r mostrando no desbotado
das cores e nos rasgões entrevistos nas camisas a pobreza dos seus donos.
Lola M. Bracet
Este cenário, tão simples, levou-me durante as horas que passei tentando
captá
-lo na tela a conhecer profundamente o Professor Bracet. Ensinou-me inicialmen-
te, a
ver os objetos tais como eles são... O despojamento do artista ao tentar captar a
realidade é fundamenta
l na pintura. A humildade, a inocência quase infantil com que
ele "via" o mundo não era transmitida por palavras.
Retrato de Rachel
. Com rápidos toques ia auxiliando a tosca mão do aprendiz a resolver os inúmeros
prob
lemas que tinha diante de si. Outras vezes ficava silencioso, absorto, sem prestar
atenção a nada a não ser aos traços
, manchas que rapidamente ia acumulando na tela.
Comecei a compreender que todas as coisas tem peso,  textura,  profund
idade, "alma" e
que o verdadeiro artista pode captar esse conjunto de atributos com a ponta de seu
pincel
. E,  ainda mais,  ao comprimi-lo na tela com a pressão e duração adequadas,
deixa
r  lá "algo" registrado que passa a ter uma vida própria em ressonância com aquilo
que serve de modelo.
O contato constante com o Professor fez-me sentir o porquê o nu feminino era
para ele um interesse constante. O desvelar do corpo, as cu
rvas, a maciez da pele, os
músculos entrevistos na carnadura eram a revelação de uma realidade transcendente
que é a própria razão de ser de tudo e que se encontra abafada por uma série de
"mantos" espessos.  O "desnudamento" é o p
rocesso profundo através do qual o artista
procura atingir o cerne dessa realidade do q
ual a forma é apenas sua máscara externa.
Compreende também, como ele sem palavras, transmitia a visão unitária da existência.
E como nas suas telas tudo parece pulsar sob uma luz da eternidade. Assisti inúmeras
reuniões na sua casa na Rua Rocha Miranda, 81 na Tijuca que era ao mesmo tempo, seu
lar, atelier, museu, santuário onde junto com a sua querida Lola recebia os seus inúme-
ros amigos para reuniões litero-musicais. Enquanto se falava de Teosofia, Budismo,
Religiões Orientais ou se ouvia Mozart ou Chopin o Professor circulava sorrindo.
Passava como uma brisa sempre atento a todos e a tudo e esquecendo os nomes ou os
trocando sem cerimônia...
Aos poucos fui compreendendo que a modernidade do pintor está na sua capa-
cidade de captar o real com toda a pureza. E que é possível no claro escuro de uma
velha parede descascada ou nos remendos desbotados de uma calça pendurada numa
corda encontrar abismos de expressividade latente. E que à medida que o artista se
torna mais impessoal, mais simples e mais autêntico, mais universal.
Anfora
Acompanhei a sua rápida doença e o exemplo do estoicismo de um homem que
sabia que ia morrer, mas que continuava como Sócrates, antes de tomar a cicuta, a estar
atento com todos a sua volta. Sócrates recordava aos seus amigos mais chegados um ga-
lo que devia a alguém e que deveria ser pago. Bracet, que nada devia, falava das pessoas,
objetos e situações cotidianas. E sorria sempre. Assim foi a sua máscara de morte com
um indefinido sorriso nos lábio. A de um homem realizado como homem e como artis-
ta. De alguém que viveu uma vida dedicada a arte
. E que conseguiu atingir a suprema
Arte graças a seu gênio criador a Arte. Maior: A Arte de Viver.

Murilo Nunes de Azevedo
Ex-Presidente da Sociedade Teosófica no Brasil

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